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Mlle Le Normand era, realmente, uma ‘cartomante’?

Marie-Anne Le Normand constantemente se denominava sibila ou ‘profetisa’ (pythonisse) e costumava sustentar seus livros em suas visões e profecias. Quando se permitia falar sobre suas técnicas divinatórias ela evocava um impressionante catálogo de instrumentos mágicos: O espelho flamejante de Luca Gaurico, as trinta e três varas gregas, a ‘cabale de 99 de Zoroastre’, alguns grimórios, uma varinha divinatória, seus preciosos talismãs, o açoélectre, as chaves de Salomão, o anel cigano, a(s) flecha(s) de Abaris, uma lupa mágica, etc, etc. As cartas não foram esquecidas, mas não foram, obviamente, colocadas em primeiro lugar. Tarô, sempre escritos tharots, não são frequentemente mencionados. Quando elas os usa, é como os outros instrumentos, de forma confusa e nebulosa, geralmente, qualificada como ‘misterioso’,’mágico’, etc o que lhe permite manter tudo muito vago.

 

Entretanto, vários relatos – registros policiais e publicações literárias - revelam que ela usava tarôs e cartas comuns como todos os ‘tireuses de cartes’. Os documentos que foram usados para acusa-la em Bruxelas, em 1821 que ela obsequiosamente reproduz no final do seu Souvenirs de la Belgique, dizem todos que ela recebia seus clientes com cartas comuns e tharots, dependendo do que pudessem pagar.

 

No seu L’hermite de la chaussée d’Antin (Paris, 1813), Victor Étienner Jouy explica como ela operava: ‘passado, presente e futuro serão expostos juntos sob seus olhos graças a um simples baralho. Entretanto, devo dizer que essas cartas são muito maiores que as outras, decoradas com hieróglifos [“tarotées em forme d’hiéroglyphes”]. A feiticeira as embaralha, meditando de forma edificante, e as combina através das habilidosas combinações de Etteilla’. Outro relato inesperado é dado pelo Barão Karl August von Malchus (1770-1840). Embora sendo um economista e estar longe de acreditar em leitura da sorte, Malchus consultou Marie-Anne Le Normand entre 1810 e 1814. Se suas memórias, que foram publicadas pela primeira vez no Die Geheimwissenschaften de  Carl Kieserwetter (Leipzig, 1895) não foram forjadas, temos, aqui, uma ótima descrição do ritual da sibila.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Exemplo de cartas de jogar na Europa, durante o século 19, utilizáveis por Mlle. Lenormand.

 

Malchus confirma que ela começa com perguntas para extrair detalhes pessoais do consulente e, então, começa a jogar as cartas. Por estar familiarizado com diferentes padrões de cartas como eram usadas nos países de língua alemã, Karl August von Malchus ficou impressioando com o número de cartas usados por Mlle Le Normand e oferece uma descrição detalhada delas. Tarokkarten, alle deutsche Karten [‘cartas normais alemãs’ antigas, por exemplo, com naipes alemãs], Whistkarten [significando, provavelmente, cartas francesas modernas], Karten mit Himmels-körperen bezeichnet [“cartas com corpos celestes”],  mit nekromantischen Figuren, etc’. A sibila insistia em que se cortasse com a mão esquerda e, supreendentemente, misturava cartas de baralho diferentes! Por exemplo, 25 cartas de um baralho de tarô, 6 de outro, 10 deum terceiro. ‘Ela separava as cartas escolhidas e as dispunha na mesa de acordo com uma ordem específica; todas as cartas de cima eram colocadas ao lado’. Ela continuava com a leitura de mãos.

 

Pode causar surpresa o relato de ‘corpos celestes’ e ‘figuras necromânticas’, por ser algo parecido com o que observamos no ‘Grand jeu de Mlle Le Normand’. Como Malchus morreu em 1840, não pode ter visto o ‘Grand jeu’ que só foi publicado em 1845. Porém, muitos tipos de cartas divinatórias foram publicadas, somente em 1845. Muitos tipos de cartas divinatórias foram produzidas desde o começo do século XIX. A maioria continha alegorias emprestadas do Grand Etteilla. Um baralho chamado ‘Petit Necromancien’ foi produzido por Robert em cerca de 1810.

 

Podemos considerar Le Normand uma seguidora de Etteilla? A reposta é não. Não só é o seu método simples e vago como seu uso constante de um baralho de 32 cartas indica que ela não seguia Etteilla. Suas alusões ao tarô são tardias (nenhuma nates de 1817), sendo esquivas e nada claras. Vimos que ela não usava o Grand Etteilla uma vez que as três cartas que cita em Les Oracle Sibyllins, em 1817 não apresentam nomes típicos que Etteilla lhes atribuía, mas que são atribuídos ao tarô de Marselha. Outro fato notório é Mlle Le Normand nunca menciona Etteilla em nenhum de seus livros! Contudo, alude a Moult, Nostradamus, Cagliostro, a quem dedica longas notas, Nicolas Flamel, o Conde de Saint-Germain e Mesmer, sem falar de pessoas ‘mais sérias’ como Lavater ou Gaal, não há uma só palavra sobre Etteilla ou seus discípulos, nenhuma alusão às suas teorias. Court de Gebelin também não é mencionado.

 

É claro que isso não é totalmente verdadeiro. Entre as 248 notas de seu Souvenirs prophétiques (1814), ela tem uma nota sobre Hermes a quem lista com outros ‘cabalistas’ [!] na página 268. Sua nota nº238 (pp. 582-3) dá, simplesmente, uma breve apresentação de numerologia, porém é referida como ‘Science des Signes’. Provavelmente, o que se pretende aqui é o opus magnum de D’Odoucet, mas é impossível de se verificar se a citação pertence a algum dos 3 volumes. Há uma enigmática alusão ao Livro de Thot em Les oracles sibyllins (p.176): Mlle Le Normand diz que ela segue ‘par les dix-neuf points du livre de Thot...’ (através dos dezenove pontos do Livro de Thot’) para a qual não dá qualquer explicação. E, vimos que  V.-E. Jouy, descrevendo negativamente suas atuações negativamente, alude às ‘habilidosas combinações de Etteilla’. Mas isso é, provavelmente, alguma confusão feita pelo escritor.

 

 

O ‘Grand jeu de Mlle Lenormand’ e
outros baralhos Lenormand

 

O nome de Mlle Le Normand também está ligado a um baralho cartomântico especialmente projetado, o ‘Grand jeu de Mlle Lenormand’, ainda editado pela Grimaud, a principal produtora de cartas. Baseado num baralho de 52 cartas, ele inclui duas cartas extras representando um homem e uma mulher, significadores dos consulentes. Como Prof. Detlef Hoffmann observou, as cartas não seguem nenhum sistema identificável, sendo assim, ‘um dos complicados baralhos divinatórios’. Cada uma das 52 cartas mostra uma cena central (‘grand sujet’) cercado por símbolos diferentes. No canto superior esquerdo, há uma miniatura de uma carta normal, no canto direito superior, uma letra aparece com um tema geomântico abaixo; entre eles há uma constelação celeste. Na parte esquerda inferior duas figuras são separadas por uma flor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cartas do "Grand Jeu", mais um jogo associado à cartomante Lenormand

 

Esse baralho de caras ‘astro-mitológico-herméticas’ apareceu pela primeira vez, dois anos depois da morte de Le Normand. Era vendido com uma coleção de 5 livros sob o título genérico de Grand jeu de sociètè et pratiques secretes de Mlle Le Normand (O grande jogo da sociedade e práticas secretas de Mlle Lenormand), por ‘Mme la comtesse de ***. O editor dá seu endereço – mas não o seu nome – como 46 rue Vivienne.

 

O primeiro volume, Explication et application des cartes astro-mythol-hermétiques, avec de nombreux exercices sur les fleurs, les animaux et d’um double dictionnaire de fleurs emblématiques, é uma explicação das cartas com muitos exercícios de flores, animais, cores e talismãs,  junto com um tratado de geomancia e um dicionário de flores emblemáticas. Sua capa promete ‘um baralho de 54 cartas coloridas’. Uma publicidade colocada no fim do 3º volume diz que as cartas foram impressas em litografia colorida por Engelmann e Graf, a célebre companhia que introduziu a litografia na França e foi pioneira na sua aplicação com cores, da qual ‘Grand jeu de sociètè’ está entre seus primeiros exemplares.


A coleção continua com a parte 2: Astrologie ancienne et moderne contenant toutes les tables nécessaires pour dresser toutes sortes de thème, em quel lieu et pour quel que ce soit; suivi d’um traté des nombres cabalistiques (Astrologia antiga e moderna contendo todas as tabelas necessárias para desenhar todos os tipos de mapas em qualquer lugar, para qualquer um, seguida de um tratado sobre números cabalísticos); Parte 3: Traité complet de chiromancie ancienne et moderne; suivi d’um petit traité de physiognomonie et craniologie, d’aprés Lavater et Gall (Tratado completo de quiramancia antiga e moderna; seguido por um pequeno tratado sob fisiognomonia e craniologia, segundo Lavater e Gall), publicado atualmente ‘au dépôt du Grand jeu de société; Parte 4: Le jeu de la fortune, ou response des dieux, déesses, demi-dieux et héros de l’antiquité aux questions qui leur sont adressées sur les destinées humaines (O jogo da sorte ou resposta dos deuses, deusas, semideuses e heróis da antiguidade para questões às quais são perguntados sobre destinos humanos); parte 5: Les oracles de douze sibylles, ou solutions par les nombres aux questions proposées (Oráculos das doze sibilas, ou soluções para perguntas propostas por números), todos publicados em 1845.

 

Essa ‘obra imensa’, ‘bem escrita e arranjada’ é, supostamente para ser colecionada pelos ‘femme d’esprit’, de quem o nome deve permanecer oculto. As explicações das cartas são vagas reminiscências do Petit Etteilla, mas atribuem vários significados para diferentes assuntos. Em qualquer caso, eles não correspondem a menor alusão encontrada nos escritos de Mlle Le Normand. Além disso, é claro que ela usava um baralho de 32 cartas. Os volumes seguintes trazem indícios óbvios de uma obra apócrifa: nem seu estilo nem sua terminologia tem qualquer relação com qualquer tema de  Mlle Le Normand. O volume 1 foi reeditado por Breteau em 1865. Era vendido com a nova edição das cartas ‘atro-mitológicas-heméticas’, impressas em litografia de crayon por Bertatus e coloridas à mão.

 

O ‘Grand jeu de Mlle Lenormand’  fez surgir uma cópia adiantada: em cerca de 1850 a editora de J.F. Aug. Reiff publicou um baralho de 55 cartas cujos títulos das cartas tem a marca ‘Wahsage-Karten der berühmten Mlle Lenormand’ (cartas divinatórias de Mlle Lenormand). As cartas são arranjadas de forma diferente: cena central está na parte inferior da carta e figuras pequenas aparecem no centro. As contelações foram omitidas.

 

Baralhos mais recentes surgiram por volta de 1850 sob o nome de ‘petit lenormand’. Sua composição de 36 cartas aponta para países germânicos ao invés da França, onde tal composição não era usual desde o século XVII; sua iconografia simples não tem nem a ver com o ‘Grand jeu de Mlle Le Normand’ nem com os métodos de leitura de cartas próprios de Mlle Le Normand. As miniaturas de cartas que, por vezes, substituem as marcas francesas na parte central superiora, mostram padrões de naipes típicos da Alemanha e França. Cada carte tem somente um símbolo: um anel, um navio, um coração, etc. Fabricantes de carta alemães, austríacos e, até mesmo, belgas e suíços fabricavam e ainda fabricam esses ‘Petit Lenormands’. Incrivelmente, esse tipo de cartas nunca foi produzido na França.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cartas do "Jogo da Esperança" de J. Kaspar Hechtel, impressas em Nuremberg, 
no final do séc. XVII. Todas as ilustrações do posterior "Petit Lenormand"
já estão presentes neste jogo: o Cavaleiro, o Navio, a Casa, o Urso, o Anel, etc.
Veja mais detalhes em O Jogo da Esperança, um jogo que virou oráculo

 

Detlef Hoffman mostrou que seu protótipo pode ter, claramente , vindo de um lindo baralho de cartas peculiares chamado ‘Das Spiel der Hofnung’ [sic] / Le jeu de l’esperance’ (O jogo da esperança), publicado por volta de 1800 por G.P.J. Bieling de Nuremberg. Supreendentemente, ele não é um um baralho divinatporio, mas um jogo de tabuleiro! O folheto que o acompanha (Das Spiel der Hofnung [sic], mit einer neuen Figurenkarten von 36 illum. Blättern. Zwite verbesserte Auflage, ex. O jogo da esperança, com novas cartas ilustradas [feitas] de 36 iluminuras. Segunda edição ampliada) descreve  as regras: as cartas devem ser arranjadas para formar um quadrado de 36x36 em ordem numérica. Dois dados são usados e cada jogador move seu peão de acordo com os dados até a trigésima sexta carta. Como nos jogos de tabuleiro, há casas que de sorte e azar. Todavia, nas últimas linhas do texto dizem que ‘com as mesmas cartas pode-se fazer um divertido jogo de adivinhação’. É um sistema simples de pergunta-resposta usando somente 32 cartas dispostas em 8 fileiras de 4 cartas. As cartas são gravadas e belamente coloridas à mão. Cada uma possui duas cartas em miniatura : uma de naipes alemães conhecidos como ‘padrão Ansbach’ e o a outra do assim chamado ‘padrão bávaro-parisiense’ (naipes franceses). Os símbolos e números são os mesmos nos baralhos posteriores.

 

No final, a carreira de Mlle Le Normand provou ser muito bem sucedida. Seu moderno senso de publicidade e seu uso da mídia do momento – livros circunstanciais, artigos da imprensa, mesmo os adversos, sem falar da grandiosidade de seu funeral – conderam-lhe fama universal. A única coisa que lhe interessava era deixar seu nome para posteridade. Nenhuma teoria ou mensagem. Ela não criou ou inspirou a criação de qualquer baralho de cartas divinatórias. Escreveu muitos livros, porém, todos focados em suas visões e encontros históricos. Ela mal sabia o que era o tarô e nunca mencionou Court de Gebelin, Etteilla ou seus seguidores. Mas os anos não eclipsaram seu nome: ela permanece a maior cartomante de todos os tempos.

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